Em nota conjunta, 23 organizações criticam associação feita por Bolsonaro entre adolescentes venezuelanas e prostituição

Associações de direitos humanos que atuam para migrantes e refugiados divulgaram nesta quarta-feira (19/10) uma nota de repúdio conjunta à fala do presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre as meninas venezuelanas da comunidade de São Sebastião, no Distrito Federal.

“Tal manifestação afronta diretamente garantias asseguradas nas políticas do Estado brasileiro de proteção a adolescentes, mulheres e migrantes, banaliza a prática de conduta criminosa e as coloca em ainda maior risco de violência pela estigmatização, desinformação e xenofobia”, avaliam as entidades que assinam o documento. Entre as 23 organizações estão a Cáritas Brasileira, o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), que acompanham as adolescentes ofendidas.
Brasil avançou, mas falta integração no longo prazo
“A afirmação do presidente também estimula a estigmatização de pessoas migrantes e refugiadas e, por consequência, busca deslegitimar o direito de migrar. Atualmente, existem mais de 365 mil pessoas migrantes e refugiadas venezuelanas no Brasil, que contribuem para o desenvolvimento econômico e cultural do país”, diz ainda a nota.
As associações defendem que o Brasil avançou, nos últimos anos, no acolhimento emergencial com a Operação Acolhida — iniciada em 2018, durante o governo de Michel Temer (MDB) —, mas que ainda é preciso investir em políticas de longo prazo para integração socioeconômica dos imigrantes.
“A fala proferida pelo chefe de Estado está na contramão desses esforços e contribui para a propagação da xenofobia, podendo afetar negativamente a percepção social sobre a migração. O combate e prevenção à discriminação e à xenofobia devem ser considerados prioridade em um Estado democrático de direito e são princípios da Lei de Migração brasileira”, afirmam.

A nota agradece ainda a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) por ter acionado a Defensoria da Infância e da Adolescência e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) em defesa das adolescentes citadas por Bolsonaro. As entidades não mencionam o vídeo de retratação divulgado na terça-feira (18) pelo presidente.

O IMDH se manifestou ainda ontem em comunicado assinado pela sua diretora, Irmã Rosita Milesi, e disse que as falas do presidente “causaram grande preocupação e afetaram a comunidade venezuelana, principalmente mulheres e adolescentes”. Questionada pelo Correio sobre o pedido de desculpas de Bolsonaro, irmã Rosita respondeu: “Penso que elas merecem uma reparação correspondente ao dano moral causado. Espera-se, pelo menos, isto”.

Confira a íntegra da nota de apoio à comunidade venezuelana no Brasil:

“As organizações abaixo subscritas, atuantes no âmbito do Direito Migratório e do Direito Internacional dos Refugiados, vêm expressar seu repúdio e preocupação com as falas do presidente da República, no dia 14 de outubro de 2022, sobre meninas venezuelanas, de 14 e 15 anos, em São Sebastião, região administrativa do Distrito Federal.
Tal manifestação afronta diretamente garantias asseguradas nas Políticas do Estado brasileiro de proteção a adolescentes, mulheres e migrantes, banaliza a prática de conduta criminosa e as coloca em ainda maior risco de violência pela estigmatização, desinformação e xenofobia. Ainda mais grave por se tratar de fala do presidente da República, sobre quem recai o dever de fazer cumprir princípios e direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal Brasileira.


A fala do presidente promove desinformação sobre a comunidade venezuelana do Distrito Federal, uma vez que organizações da sociedade civil locais confirmaram que não há indícios da existência de redes de exploração sexual na região e não foram apresentadas provas sobre as graves insinuações efetuadas. Jornalistas também apuraram que, no dia da visita, um projeto social envolvendo atividades de estética estava acontecendo no local. Ressaltamos que, à época do fato relatado, em abril de 2021, não foram levantadas quaisquer das alegações feitas agora, inclusive em nenhum dos registros publicados nas redes sociais do presidente da República.
A exposição da comunidade venezuelana, promovida através de acusações infundadas do presidente da República, coloca em risco a integridade física e segurança de venezuelanos e venezuelanas, e, de forma ainda mais preocupante, de meninas e adolescentes dessa comunidade. Conforme demonstra uma coluna do Globo, desde que a fala começou a repercutir no último fim de semana, a casa tem sido cercada por repórteres, além de a primeira-dama e a senadora eleita Damares Alves terem forçado um encontro, em caráter sigiloso, sem a presença de organizações e instituições que atuam na defesa de crianças e adolescentes e pessoas migrantes, mesmo após a inicial recusa das líderes venezuelanas da comunidade.
Todos esses acontecimentos desrespeitam o paradigma da proteção integral das crianças e adolescentes expresso no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que, inclusive, estabelece como dever de todos garantir o direito à privacidade, preservando a imagem e identidade dessas pessoas na condição peculiar de desenvolvimento (Art. 17), “pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” (Art. 18).
A afirmação do presidente também estimula a estigmatização de pessoas migrantes e refugiadas e, por consequência, busca deslegitimar o direito de migrar. Atualmente, existem mais de 365 mil pessoas migrantes e refugiadas venezuelanas no Brasil, que contribuem para o desenvolvimento econômico e cultural do país. Apesar de o país ter avançado no atendimento emergencial humanitário com a Operação Acolhida, ainda faltam políticas de longo prazo para a efetiva integração socioeconômica dessas pessoas. Neste contexto, associações e coletivos de migrantes, organizações da sociedade civil, instituições e organizações internacionais têm somado esforços para acolher, integrar e proteger pessoas migrantes no país. A fala proferida pelo Chefe de Estado está na contramão desses esforços e contribui para a propagação da xenofobia, podendo afetar negativamente a percepção social sobre a migração. O combate e prevenção à discriminação e à xenofobia devem ser considerados prioridade em um Estado democrático de direito e são princípios da Lei de Migração brasileira (Art. 3, II).
Ainda que fosse identificado qualquer crime de exploração sexual no local, o presidente da República, na condição de agente público, teria o dever de seguir o correto protocolo a ser adotado nesses casos, incluindo o acionamento das redes de proteção às possíveis vítimas, conforme o ECA e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil. Além disso, o procedimento aplicado a pessoas migrantes e refugiadas deve ser o mesmo aplicado para pessoas brasileiras.
De acordo com o Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, as obrigações estatais definidas na Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança se aplicam a todas as crianças que se encontram no país, independentemente de nacionalidade, status migratório ou apatridia. Além disso, o Unicef também afirma que os Estados devem tomar medidas positivas para garantir que crianças vítimas de tráfico desfrutem de todos os direitos previstos na Convenção, levando em consideração o princípio do melhor interesse da criança e o direito à proteção sem discriminação de raça, gênero, religião, origem, nacionalidade ou status migratório.
Os canais de denúncias oficiais são fundamentais à proteção de crianças em situação de exploração ou abuso sexual. Para denunciar estes crimes, deve-se buscar o Conselho Tutelar, delegacias especializadas no atendimento de crianças ou de mulheres, o Ministério Público ou ligar para o Disque Direitos Humanos (Disque 100), que recebe denúncias de violações de direitos humanos contra crianças e adolescentes, e para a Central de Atendimento à Mulher (Disque 180), que recebe denúncias de violações contra mulheres, inclusive as migrantes e refugiadas, e as encaminha aos órgãos competentes. Ambos os canais recebem denúncias gratuita e anonimamente. Toda possível situação de violência deve ser reportada para a ciência do poder público e seus respectivos procedimentos investigatórios, sob pena de a omissão também acarretar em uma conduta criminosa.
Por fim, saudamos iniciativas como a da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal, que entrou com representação junto à Defensoria da Infância e da Adolescência para garantir medida protetiva às adolescentes venezuelanas citadas pelo presidente Bolsonaro. O momento requer que seja dada prioridade absoluta à proteção a essas adolescentes migrantes e às lideranças venezuelanas expostas neste episódio.
Assinam:
Associação Nacional de Centros de defesa da Criança e do Adolescente – ANCED
Associação Palotina e Congregação das Irmãs do Apostolado Católico
Cáritas Arquidiocesana de São Paulo
Cáritas Brasileira
Cáritas Brasileira Regional Nordeste 2
Cáritas Brasileira Regional Paraná
Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante – CDHIC
Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular – CESEEP
Centro de Integração do Migrante
Conectas Direitos Humanos
Equipe de Base Warmis-Convergência das Culturas
Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP
FICAS
Fundação Avina
Instituto Migrações e Direitos Humanos – IMDH
Missão Paz
Migraidh Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional UFSM
Observatório das Metrópoles – São Paulo
Observatório Eclesial Brasil
Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes – ProMigra
Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados – SJMR
Signis Brasil
Grupo de Apoio ao Imigrante e Refugiado do Oeste de Santa Catarina – GAIROSC”

Fonte: Correio Braziliense